sábado, 30 de abril de 2016


Amor sem preconceitos

É difícil encontrarmos casais onde um é mulato e o outro, loiro; um negro e o outro de olhos puxados. Mas mesmo sendo raros, os relacionamentos inter-raciais estão aí, mostrando que muita gente, na hora de amar e ser amado, desafia os padrões sociais.

Diz aí, quantos casais formados por uma pessoa de cor negra e outra de cor branca você conhece? E casais onde um é de descendência japonesa ou indígena? A reportagem resolveu providenciar uma pequena e despretensiosa pesquisa e saiu por aí fazendo essas duas perguntas a um monte de gente. Os dados colhidos não foram minuciosamente analisados por antropólogos, historiadores, cientistas sociais e estatísticos, não. Mas basta passar para vocês as respostas mais freqüentes dadas pelos entrevistados. Tanto para a primeira quanto para a segunda pergunta, a resposta campeã das campeãs foi: "um" (sendo que muitos disseram, instintivamente, “um só”). É realmente raro encontrarmos parceiros com pés em continentes diferentes: um negro, outro de olhos puxados; um mulato e outro loiro de olhos azuis. Só que mesmo representando uma porção bastante reduzida dos casais, os relacionamentos inter-raciais estão aí, mostrando que hoje - provavelmente mais do que nunca – tem muita gente que, na hora de amar e ser amado, desafia o preconceito, os padrões sociais e até a própria família.
Em pleno século XXI e, principalmente, num país de população completamente miscigenada – onde classificar um indivíduo como branco, negro ou pardo não é tarefa fácil, como já provou a polêmica sobre distribuição de cotas nas universidades – dois apaixonados de cores ou descendências diferentes ainda enfrentam grandes dificuldades. E parece que a família (geralmente a do representante branco da relação) é o maior dos obstáculos a ser ultrapassado. Isso quando não é o complô familiar que vence a batalha, como ocorreu com a administradora Rafaela B., que não esquece do caso que teve com um rapaz negro, dono do melhor beijo na boca que deu em sua vida. “Foi legal demais. Ele era lindo! Mas a relação não foi pra frente por preconceito da minha família. Não aguentei a pressão. Ele era todo apaixonado por mim, e eu tava me envolvendo também, mas um dia minha mãe me viu conversando com ele na porta do prédio e perguntou quem era aquele "favelado". Porque, além de negro, ele era pobre, sabe? A partir daí, ela ficava fazendo esses comentários, aí achei melhor acabar por ali para não me aborrecer. E detalhe: minha família toda é de português misturado com negro, todo mundo tem os dois pés na África”, protesta Rafaela, que hoje já está casada... com um loiro de olhos azuis. “Minha família é preconceituosa demais. Sempre briguei muito com eles por causa disso. Meu marido é o queridinho da família. Se ele não fosse loiro de olhos azuis, não sei como seria. Só que ele é gordinho e baixinho e até por isso eu ouço meus parentes fazerem comentários preconceituosos”, revela a administradora.
O publicitário Rodrigo Faria, de 25 anos, também sentiu o peso do preconceito por parte de sua família quando escolheu sua primeira namorada, uma mulata de fazer parar o trânsito. “Ela era venerada por sua beleza. Não tinha uma pessoa que não achasse ela linda. Até a minha mãe, que implicava com o fato de ela ser negra, achava. Mas só sabia pensar e reclamar que teria netinhos negros. Eu com 15 anos de idade e ela já falando em netos!”, conta Rodrigo, que também já namorou uma japonesa. Com essa, sua mãe não implicava tanto. “Minha mãe gostava da japonesa. Acho que não se importaria tanto de ter netos de olhos puxados. Vai entender! Cada um com seus preconceitos, né?”, diz Rodrigo, que, como se pode ver, é bem chegado numa mulher exótica. “Agora estou saindo com uma índia! Eu gosto de estrangeiras e pessoas exóticas. Me atraem muito. Cada pessoa, independentemente de raça, da religião e das preferências, tem algo a ensinar. Eu gosto de experimentar coisas novas, aprender com os outros diferentes maneiras de olhar o mundo”, filosofa o publicitário.
Sem dúvida, muito já se evoluiu quanto à aceitação de relacionamentos inter-raciais. Isso porque a própria luta pela valorização do negro, não só no Brasil, como no mundo, já alcançou conquistas consideráveis. O estudante de medicina Tiago Campos, de 26 anos, é um exemplo de como essas questões aparentemente tão conflituosas, podem ser encaradas de maneira simples. “Eu não sou nem negro: sou azul de tão preto. Se tiver de noite e eu não sorrir pra foto, nem apareço!”, brinca o médico. Das três namoradas que Tiago teve, todas eram brancas. A atual inclusive é loira. “É loiraça de chamar atenção. Quando está comigo do lado, então! As pessoas olham, às vezes ouvimos alguém comentar alguma coisa, cochichar... É normal. Confesso que não é agradável, mas o que importa é a maneira como o casal pensa e lida com isso”, afirma Tiago, que diz não se sentir nem um pouco desvalorizado pela família da namorada. “Sempre fui muito bem tratado e respeitado. Acho que a família dela prioriza outras coisas, como o meu trabalho, meu caráter, a relação que tenho com meus familiares. Eu sei, por exemplo, que o ex-namorado dela não agradava muito aos pais, não. Já ouvi dizerem que ele era meio vagabundo e infantil. Mas era branquinho da silva, está vendo?”, compara.
Gente desprendida assim como Tiago não se acha facilmente por aí. Muitas pessoas acreditam, aliás, que, em alguns casos, o preconceito parte do próprio negro. O analista de sistema Manoel Cardoso, de 42 anos, era doidinho para namorar a amiga de um grande amigo seu, quando ainda era jovem. Só que não conseguiu dela nem uns beijinhos... “Eu achava ela muito interessaste, uma pessoa superbacana e, ao mesmo tempo, bonita. Um dia estávamos eu, meu amigo, ela e mais uma menina no carro, dando um passeio pela orla. De repente passou um cara correndo pela rua que nem um louco. Todo mundo olhou espantado, disseram: ‘que maluco!’, e eu acrescentei: ‘ele é branco, vão achar que é atleta; se fosse negro, iam achar que era ladrão’. Depois desse dia, a menina nunca mais falou comigo. Criou uma rejeição a mim tão forte, mas tão forte, que chegamos a morar no mesmo prédio e ela nunca se dirigiu a palavra a mim. Tem gente que tem a alma armada por ter sofrido tantos preconceitos, sei lá... Só sei que ela perdeu a chance de conhecer melhor e até namorar, quem sabe?, um cara bacana como eu”, brinca Manoel.
Para a psicóloga Olga Inês Tessari, o preconceito é mesmo a fonte de todos os problemas que não só impedem os relacionamentos inter-raciais de se prolongarem, mas também de se iniciarem. “Há várias razões que explicam o porquê de os casais evitarem a mistura de ‘cores’ e todas elas estão ligadas ao preconceito racial que, ainda que seja de forma velada, continua forte. Eu me lembro da minha avó, que era polonesa de olhos azuis e nunca havia visto um negro antes de vir ao Brasil, me dizendo que se eu namorasse um, eu podia esquecer que ela existia. Todas as vezes que eu ia à praia e voltava queimada de sol, ela simplesmente não olhava na minha cara. Quando eu ia conversar com ela, ela respondia secamente: ‘não tenho neta negra’. Como ela poderia ter preconceito se nunca havia conhecido negros? Certamente criou seu preconceito baseada no fato de que negros têm usos, costumes e valores muito diferentes dos de uma européia. Além de se deixar levar pelo preconceito racial vigente no Brasil, onde negros, oriundos da escravidão, são tidos como pessoas sem valor, sem educação, cultura e das camadas sociais mais baixas. Eu já ouvi, por exemplo, de um pai de filha branca que se relacionava com negro a seguinte frase: ‘como ele vai sustentá-la se os negros são preguiçosos, não são ambiciosos?’ Uma generalização sem qualquer comprovação e fundamento, mas que revela a forma como a sociedade encara o relacionamento inter-racial”, analisa Olha Inês.
Parafraseando o rapper Gabriel O Pensador, em Lavagem Cerebral, “o preconceito é uma coisa sem sentido”: “O que importa se ele é nordestino e você não? O que importa se ele é negro e você, branco? Aliás, branco no Brasil é difícil, porque no Brasil somos todos mestiços (...) A raiz do meu país era multirracial / Tinha índio, branco, amarelo, preto / Nascemos da mistura, então por que o preconceito? (...) Uns com a pele clara, outros, mais escura / Mas todos viemos da mesma mistura”. Olga Inês também chama atenção para o fato de o povo brasileiro ser fruto de uma grande miscigenação e que, nem que seja aos poucos, os (pré)conceitos estão se modificando. “Se não me engano, o último Censo revelou que mais de 50% da população brasileira é de etnia africana. São Paulo, por exemplo, é a maior cidade com concentração de nordestinos do Brasil: a cada quatro pessoas, uma é nordestina. Temos visto no mercado o aumento de produtos específicos para pessoas de etnia afro, seja porque os negros têm aumentado seu poder aquisitivo, seja porque os conceitos realmente estão mudando”, finaliza Olga Inês.

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